Dezembro natalício traz novidades como presentes:
– a tradição renovada, numa versão infantil da Bíblia
– a atualidade portuguesa, em filme português, com atores portugueses – “A Gaiola Dourada”
Há qualquer coisa que nos aproxima.
Nós, os sonhadores, passamos a vida a baixar o vidro do carro para deixar a mão a desenhar ao vento. Ondulamo-la como se um golfinho nos acompanhasse no asfalto, lado a lado.
Nós, os sonhadores, observamos o trajecto das libelinhas e abelhas e zângãos e moscas que embatem no vidro do carro e, com a mesma velocidade que nos lembramos que podíamos ter sido nós a cumprir fatal destino, accionamos o limpa-pára-brisas para sujar ainda mais o vidro. Os semicírculos brancos que se formam em seguida, fazem-nos concordar que as escovas precisam de ser substituídas e, com sorte, pode ser que chova num dia solarengo.
Nós, os sonhadores, após comermos pão com manteiga, tentamos aproveitar as migalhas que se perdem no prato, fazendo pontaria à caneca com um restinho de café. Acertar no alvo pode muito bem melhorar o nosso mundo, dinamizar momentos entediantes e, porque não, o cosmos. Olhamos cá do alto para uma migalha lá no fundo como se de uma galáxia se tratasse.
Depois, nós, os sonhadores, observamos a forma curiosa e única que a mão humana adopta nesse arremesso pericial de migalhas. Enumeramos as suas utilidades e terminamos frequentemente a coçar a cabeça em pensamentos ou a repousar as ideias no queixo, entre o polegar e o indicador, normalmente com o cotovelo a servir de base. Pensamos nos limites do universo.
Dormimos na insónia, acordamos com pavor a obrigações, mas, sempre que possamos, vamos num pulo até à margem de um rio ou à beira-mar no crepúsculo, mesmo que estejamos, em realidade, a ser esborrachados num transporte público alternativo em dia de greve.
Nós, os sonhadores, recusamos deixar fugir uma bola de sabão pelos ares. Rebentamo-la e fazemos em seguida outras tantas até não nos ser possível distinguir uma banheira cheia de espuma de uma garrafa a verter champanhe em cascata.
A música toca na rádio um infindável horizonte que se afasta à medida que nos aborrecemos à procurar de outras frequências, fazendo da ponta do nosso dedo uma caneta numa folha em branco e das nossas vidas um sonho constante.
Nós, os sonhadores, só precisamos de estar acordados.”
in http://www.rbe.min-edu.pt/np4/363.html